Uma experiência nos foi sugerida para podermos ter um gostinho do que é um processo de observação de pesquisa. Não contente em nos fazer olhar “de cima” , como a ratinhos se perdendo e se encontrando em labirintos olhados por um cientista folgado que se debruça sobre o experimento, o desafio dado pela nossa Mestra Guia era se emaranhar no lócus observado e sermos participantes de todo o processo em atuação.
O espetáculo em cena se caracterizava por uma tarde bem quente do mês de dezembro, com uma constante ameaça de chuva forte sobre nossas cabeças atentas, e pessoas, muitas delas, um grande mar delas, faziam compras natalinas. Ao chegar na ladeira, lá de cima a imagem era de um colorido meio sujo, corpos em trânsito que se moviam sem um fluxo direcional definido. Não dava para ver o chão, como ele era, se de asfalto ou paralelepípedos; ou mesmo se nele havia buracos. O que chegava aos ouvidos era como que numa feira, de quarta-feira do bairro, sabe? Os gritos dos feirantes eram os ambulantes, que, em um conjunto de palavras incompreensíveis expelidas à velocidade de um jato, chamavam a atenção para seus produtos. “Apaaaaaaaaaaaaaabarcabebigod”. Na espera da terceira vez que essa... hum... oração? ...palavra? ...som? foi proferido, aliado ao produto em sua mão, pela lógica deduzi que era algo que aparava barba, cabelo e bigode. As coisas, todas elas, eram mais ou menos assim por lá.
A primeira impressão, a tida de cima da ladeira , talvez seja uma similar ao do cientista observador de ratinhos, que olha tudo por cima e espera pra ver no que vai dar. Não interfere, não atua, apenas observa, julga precipitadamente uma coisa e outra. É quase destituída de emoções. Mas ela foi bem curta. Logo que adrentei à multidão, eu já fazia parte dela e não tinha mais como fugir dessa condição. Para algum outro observador ainda de cima, a multidão da qual eu ajudava a adensar ainda podia ser um colorido sujo que se movia sem nexo, um aglomerado amorfo que diz apenas o que parece querer dizer: quanta gente junta!. Mas agora, a multidão da qual eu fazia parte era totalmente outra da qual eu não fazia. A partir de mim então era.
Agora as emoções quase que queriam pular para fora. As emoções dos outros contíguos a mim eram contagiantes, pois eu me deixava ser contagiada. A pressa de uma senhora que corria esbaforida, esbarrando em todos a sua frente num pedido de licença notadamente tido por uma questão de convenções, me fazia ter uma certa ansiedade pela preocupação de que o tempo voava e não daria tempo pra nada. A moça irritada, bem a minha frente, reclamava de uma senhora grosseira que pisara em seu pé e em vez de pedir desculpas pediu licença, mesmo depois de já ter pisado em cima. Fiquei, em consolo à tal moça, inconformada com a falta de educação que muita gente insiste em ter, e compartilhei daquela irritação. Inspirando fundo, e aceitando o fato de que eu tinha que encarar aquele turbilhão de movimentos e sentimentos que me transpassavam, fui entrando nele, com um cuidado delicado de ser uma observadora nem tão participante, e assim não me perder de mim.
Decidi então focar minha atenção no comportamento dos vendedores. Tentar entender a arte que criavam para que o consumidor se convencesse da essencialidade do objeto em sua vida, antes inútil numa bancada. Atentei-me para os olhares, a vocalização, a verbalização que apresentavam, num olhar bem antropológico, bem presente, sem muita carga de juízos de valores.
Falarei dos ambulantes. A maioria deles já estavam instalados em postos semi-fixos, posso dizer. Ou em uma bancadinha montada, ou com seus produtos espalhados, ordenados ou não, sobre uma lona. Presumo (acabo de fazer essa reflexão, o que se fosse na hora poderia ser investigado) que os da bancada tenham algum registro e paguem impostos para ficarem lá, enquanto que os da lona não, estando sempre a postos para transformarem-na em trouxa e saírem correndo caso o Rapa (ou a chuva) apareça. E poucos são os que saem andando como um cabide ambulante com seus colares, chapéus, cata-ventos e afins a procura de um olhar interessado. Pude perceber que esses ambulantes têm mecanismos prontos e automatizados em suas atitudes de atração e venda sobre seus produtos. As frases chamativas eram as como mencionadas acima, ditas rapidamente, repetidamente e não tinham a menor influência da movimentação corpórea que o sujeito realizava. Ou seja, ele abaixava pra pegar algo que caia, dava um sinal de “oi!” para algum conhecido que passava, limpava o interior da orelha com a unha crescida do dedo mindinho, e as palavras saiam sempre infalíveis, e ainda no mesmo tom e ritmo musical todas às vezes. Seus olhares, acompanhados pelo movimento da cabeça guiada pelo pescoço, buscavam outros olhares, mas não quaisquer olhares. Pareciam estar de prontidão a encontrarem olhares de passantes indecisos, sedentos por comprar algo que ainda não acharam, e nem tem bem a certeza do que querem encontrar, mas querem. E são bem esses os peixes prontinhos para serem capturados em sua rede de lábia. Dou a lábia não um caráter pejorativo, mas o dom do convencimento, fundamental para seus negócios e sobrevivência. Notei que para os consumidores que passavam pouco interessados, especificamente, em seus produtos, o desgaste do vendedor também era pequeno. Falavam preço e o funcionamento do objeto, sem mais mazelas, nem sorrisos. Mas aos tais peixinhos, bem receptivos ao convencimento, a malemolência do artista se desvelava. Eram sorrisos pra lá, elogios pra cá, e a simpatia robotizada até abria espaço para o que poderia ser de mais sincero aflorar na comunicação entre as duas pessoas, não mais nos papéis de vendedor e comprador. Às vezes, talvez num desejo otimista de encarar as coisas, pude ver o gelo se quebrar, e a carcaça metálica dos robôs, de um lado e do outro dos estandes de venda, caiam em alguns pedacinhos.
No fim da tarde, a chuva ainda não tinha caído, mas a ameaça dela até estava mais presente. Os ambulantes pareciam cansados e conversavam mais entre eles, faziam piadas e brincadeirinhas de sacanear uns aos outros, e assim davam boas risada. Os transeuntes de cedo estavam também cansados e suados, alguns ainda ágeis (talvez recém-chegados) conseguiam manter a dinâmica aparente com alguma energia de movimento e emoções. Eu estava cansada e suada e muito provavelmente meu olhar, que antes via coisas enérgicas agora passasse a ver um cenário sem forças e apagado.
Voltei ao topo da ladeira, fechei os olhos e meditei por alguns instantes. Ao abrir, logo me lembrei de uma vez em que li numa obra de arte exposta na estação de metrô das Clínicas que as coisas vistas do alto poderiam ser bem esclarecedoras Na verdade ela dizia: “Dá pra ver tudo daqui de cima!”. Os dizeres se referiam a uma seqüência de fotos tiradas de um vôo de helicóptero sobre a cidade e suas inúmeras formas de vida. Essa lembrança foi essencial para eu nunca esquecer que sempre em que eu estiver perdida e sendo arrastada pelo turbilhão, sem o meu controle e conhecimento – não, consentimento é a palavra certa, consentimento! – eu posso subir num lugar bem alto e ver as coisas lá de cima.
Para finalizar, cito então parte de uma letra do Chico César, o que em palavras eu não consegui descrever no meu diário de campo sobre a minha visão última de cima da ladeira, ele verbaliza com tal fluência que parece ter feito como eu.
Experiência
era uma luz, um clarão,
um insight num blecaute.
éramos nós sem ação,
como quem vai a nocaute.
era uma revelação
e era também um segredo;
era sem explicação,
sem palavras e sem medo
era uma contemplação
como com lente que aumenta;
era o espaço em expansão
e o tempo em câmara lenta.
era tudo em comunhão
com o um e tudo à solta;
era uma outra visão
das coisas à nossa volta
e as coisas eram as coisas:
a folha, a flor e o grão,
o sol no azul e depois as
estrelas no preto vão.
e as coisas eram as coisas
com intensificação,
que as coisas eram as coisas
porém em ampliação
1 comentários:
Amei essa sua percepção da 25 de Março: é possível visualizá-la mesmo que eu nunca tivesse estado lá. E porque estive muitas vezes, sei que é fiel e de uma sensibilidade acima no normal (seja lá o que for "normal".
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