Verás aqui...

Ah... tanto mar. Tanto amor.
Sou um pedaço de vida que desperta a cada instante. Amo!
Teve um dia em que o mar levou um corpo, cheio de pensar, de achar. Neste mesmo dia o corpo escoriado nadou, sentiu, amou no mar. Viveu em mar. No corpo, agora Maria. Cheia de sentir. Muito que viver, tanto que amar. Ainda sim, cheia de pensar. Mas quando escreve, não pensa, transmite.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Se não uma lição de vida, um grande homem (de minha pesquisa)

Manipura é um senhor de 55 anos que apresenta dificuldades nos movimentos (braços e pernas), anda vagarosamente com o auxílio de uma bengala e tem muita dificuldade ao sentar. Fala também com muita dificuldade, as palavras parecem ficar presas na boca e na língua. Se expressa muito com as feições do rosto, com o olhar e com ruídos que saem forte da garganta. Homem bem alto (por volta de 1,80), magro e muito forte. Sua debilidade é somente física, não apresentando sinais de retardo mental. Sofreu um derrame cerebral quando tinha 43 anos, deixando algumas seqüelas, no entanto é bastante independente em suas atividades cotidianas.
Ao solicitá-lo para ser colaborador da minha pesquisa ele se expressou como se tivesse se desculpando e um pouco insatisfeito e triste, mas que seria difícil. Disse que “falá (faz sinal com as mãos de palavras saindo da boca), falá é muito difícil! Falá num dá!”. Eu disse que não precisaria ser falando, que qualquer forma de expressão poderia ser feita, que poderia mostrar como se sente em relação a alguma coisa dando um sorriso ou um suspiro, que daríamos uma forma de eu entender o que ele gostaria de dizer. Ele fez um sinal com a cabeça e com os olhos querendo dizer “aí sim!”. Combinamos um dia em que ele estaria no CECCO, que era o dia de artes plásticas. Cheguei no dia, sentamos à mesa onde ele já estava começando a fazer seu quadro, e começamos a entrevista.
Pedi que ele me falasse um pouco dele, o que quisesse falar, para eu traçar um perfil. Ele começou a falar e perguntou se eu sabia do acidente vascular que ele sofreu. Disse que sim. Aí ele falou que era vendedor. E falou que tocava muito. Tocava muito piano, violão e guitarra. Tocava muito rock, depois muito clássico com piano. Gostava muito, muito de tocar. Disse, com ar de reprovação, que bebia muito e cheirava pó, “pó? Muuuuito... muuuuuito!” Perguntei se poderia anotar aquilo, e ele falou que claro que podia. E disse então que sofreu o derrame. Fez parecer que associou o derrame ao uso de drogas, mas não achei conveniente perguntar. Contou também que teve por duas vezes câncer na garganta e que fez quimio e radioterapia por algum tempo. Ainda faz controle.
Começou a falar que depois do derrame ele queria se matar. Falou algo parecido a pular de um prédio, fez sinal com as mãos representando a queda de um prédio. Dizia: “Num toca mais! Num fala! Num falava nada! Nada! Pra que? Pra que?” E fazia sinal de novo de cair do prédio. Disse que após o derrame não podia fazer nada, não andava, não conseguia falar absolutamente nada, não podia mexer os braços, que estava totalmente inválido e que não tinha por que ficar vivo. Mas que nem condições ele tinha de pular do prédio. Então não fez.
Contou que começou a fazer Terapia Ocupacional no Emílio Ribas, então começou a andar, mas não falava nada. Começou a escrever um pouco. Disse que o levaram para fazer tear, mas que não gostava muito. Tentou me explicar onde era. Ele falava com dificuldade e eu também ouvia com dificuldade, mas não interrompia, deixei que ele falasse e se fosse algo que me parecesse muito relevante pedia para ele repetir. Mas aí, ele se incomodou, pois não conseguia falar direito o que gostaria e perguntava se eu estava entendendo. Eu disse que mais ou menos. Então ele fez sinal pra eu esperar e saiu. Voltou com um papel de APRESENTAÇÃO que usa justamente para esses casos:

APRESENTAÇÃO

Especialidade: Pintura Plástica
Estudei piano clássico de 1964 a 1971, toco violão, guitarra, do Rock ao Jazz, passando pelo Popular e POP, entre outros, e fiz laboratório de fotografia em casa. Trabalhei na empresas Vigor e Parmalat como vendedor institucional durante o dia, e tocava Jazz no período noturno.
Em julho de 1995, sofri um derrame cerebral, ficando com algumas seqüelas que, no entanto, não me impediram da continuar a viver. No ano de 1997, comecei um acompanhamento conseqüencial, que iniciei-me com Terapia Ocupacional, psicologia, Fisioterapia, Massoterapia, Yoga e Fonoaudiologia.
Em março de 1998, iniciei meu contato com arte, na Estação Especial da Lapa, estudei no Tear, passando, posteriormente, para o curso de óleo sobre tela com pintura Naif.
· Curso Óleo sobre Tela na Estação Especial da Lapa com a profa. Olga Beltrão.
· Curso de artes plásticas na Associação Franco Basaglia com a coordenadora Silvia Maria Fischetti.
· Participação do Grupo de Pintura PMSP com a Profa. Tereza Santos.
· Oficina de Artes Plásticas no Centro Cultural São Paulo com o Prof. Paulo Monteiro.
· Curso na Associação Rodrigo Mendes, com a Profa. Otacília Baeta e Gisele Otoboni.
· Curso no Museu de Arte Moderna – MAM de São Paulo com o Prof. Heros Kusano.
· CECCO – Centro de Convivência do Parque do Ibirapuera, Isabel Cristina Lopes, Selma Reyes.
· Curso no Museu Lasar Segall Ateliê de Gravura de Xilogravura com o Orientador Paulo Camilio Penna.



Contou que a Profa. Olga perguntou se ele gostava de pintar. Ele disse que nunca tinha sido de pintar antes. Ela ofereceu a ele uma tela, pincel e tintas e ele começou a pintar e viu que gostava, “antes gostava de tocá. Aí, hoje, vi que gosto de pintá. Tocá, tocá num dá, num pode! Pintá dá!”
Disse que conheceu Luz quando fazia o Grupo de Pintura na Prefeitura Municipal de São Paulo. Luz dava aulas de yoga lá. Ela propôs a ele que fizesse aulas particulares de yoga, que seria bom a ele. Ele falou que tinha mão boba. Aí começou a fazer yoga. Fez por um ano e meio, quando acabaram com esse programa municipal e Luz saiu. Então, quando ele estava já pintando no CECCO ela veio para dar aulas de yoga e eles se reencontraram coincidentemente. Aí ele voltou a fazer as aulas.
Perguntei se ele fazia esportes antes do derrame. Disse que nadava e fazia remo no clube Speria. Remava muito, gostava muito de remar. Perguntei o que ele sabia sobre yoga antes de começar a fazer. Disse que sabia que yoga era bom, mas não fazia. Perguntei o que ele faz hoje de exercícios, ele disse que faz natação ainda. “Com alguma ajuda?”, “Não, vou sozinho!”, “Sozinho? Consegue entrar na água sozinho? Não afunda?”, “Não! Nado sozinho. Num precisa ajuda!” Disse que vai ao clube nadar aos finais de semana, sempre que pode. Perguntei se ele era independente nas coisas que fazia em sue cotidiano, ele respondeu que sim, que mora com dois filhos, um de 23 e um de 25, mas que faz tudo sozinho. Que vai pra onde quer sozinho.
Perguntei o que ele acha de bom no yoga. Respondeu que depois do yoga começou a aumentar os movimentos. Antes ele não conseguia levantar o braço, e agora já faz um monte de movimentos. Perguntei se ele atribuía esse avanço somente ao yoga. Ele disse que muito foi pela massagem que fazia. Ele recebia uma massagem semanal em algum lugar público, que a massagista era muito boa e ele melhorou muito. Mas não tem mais onde ele fazia, e não tem dinheiro para pagar particular. Mostrou em sua carteira diversos cartões das diversas terapias por quais ele já passou: cromoterapia, aromaterapia, do-in, acupuntura. Disse que tudo ajudou um pouco, mas o que ajudou mesmo foi a tal massagem e o yoga. Que já aumentou bastante o movimento, mas que quer muito mais. No meio de seus cartões havia uma carteirinha do DST-AIDS. Eu tinha ouvido ele falas a palavra aids antes, mas como ele falou muito rápido e de passagem, fiquei na dúvida se era aids mesmo ou a palavra era antes. E a contar pelo biótipo dele, muito grande, e forte, sem sinais no rosto e corpo, nem tinha me atentado para essa idéia.
Perguntei do CECCO a ele, o que ele achava de lá, quais eram as atividades que ele fazia lá. Disse que ia três vezes por semana, yoga na terça, colóquio cultural na quarta (passeios em museus, cinema, exposições, teatro...) e pintura na quinta, “Faz muito amigo! É bom!”.
Quando perguntei a ele o que era saúde, ou ter saúde, ele não conseguia responder. Eu não sabia se ele não tinha entendido a pergunta ou se não conseguia responder. Insisti um pouco, mas ele não conseguia falar e vi que ficou um pouco ansioso com a insistência. Então perguntei se ele se considerava um homem com saúde. E a resposta foi “Antes, antes (gesticulava intensamente com as mãos, mostrando um tempo passado), hãããããmmmmmm (faz sinal de não com a mão e com a cabeça e bufou junto). Hoje, hoje (sinal de agora com as mãos)... haaaaaaaa (ergue o corpo, estufa o peito, abre os braços, sorri com os olhos)”. Encarei como um sinal afirmativo. Perguntei se hoje ele estava feliz, e ele respondeu “Hoje (gesticulando) eu pinto muito. Adoro pintá! To aqui! Sô feliz sim! Sô muito feliz! Agora só mexo isso (mostra limitação de movimento dos braços), mas quero mais e mais e mais e mais...!”
Agradeci, enfiei qualquer orgulho na sacola e fui me embora.

1 comentários:

Dea Conti disse...

Lembro-me de quando me contou da história dele. Você estava admirada e a cada desculpa minha (para não frequentar o CECCO), você me falava do tal véinho. Por isso mesmo acho que apenas o exemplo não funciona. Tem de acontecer a mudança de hábito da sociedade. Como no Japão, China, etc...